O armário, as janelas, o fogão, as vestes, a comida. Imagens tão familiares a todos nós quanto a própria sensação de estar em casa, sentimento que permeia quase a totalidade da obra de duas das maiores poetas da literatura brasileira: a mineira Adélia Prado e a goiana Cora Coralina. Apesar de o caminho das duas nunca ter se cruzado enquanto Cora ainda enchia o mundo de poesia (a escritora morreu em 1985, aos 95 anos, e Adélia - felizmente ainda viva - hoje tem 78 anos), as duas se encontram no palco do Espaço Cultural dos Correios de sexta a domingo, na peça "Cora e Adélia, receita de poesia em um dedo de prosa", em que as atrizes globais Sônia de Paula ("Caras e bocas", "Os normais", "Sítio do Picapau Amarelo") e Nica Bonfim ("A diarista", "Zorra total", "Anjo mau") resgatam parte da obra das autoras, mesclando sarau e teatro.
Em cena, as atrizes interpretam duas professoras aposentadas, Susi e Magali, amigas aficionadas por poesia que em certa ocasião presenteiam, uma à outra, com uma obra de Adélia e uma de Cora. "A partir daí, elas decidem fazer um sarau, e há a leitura dos poemas, em um diálogo não muito óbvio entre as obras, feito a partir de temáticas abordadas pelas duas: o ato de escrever, a solidão, as memórias de família, o cotidiano caseiro, coisas assim", explica Nica Bonfim, acrescentando que, em determinado momento do espetáculo, as personagens acabam vertendo-se em Adélia e Cora por meio da poesia. "É uma transformação sutil, muito natural, que se dá ao passo que elas vão se envolvendo com a obra e a história pessoal das poetas. O texto tem, inclusive, passagens de entrevistas das duas, que torna esse processo mais orgânico", completa a atriz.
Para Sônia de Paula, cujo projeto é um sonho antigo, tanto a lírica de Adélia quanto a de Cora encantam pela simplicidade e pela universalidade dos temas. "Fico muito emocionada ao ler as referências de Cora sobre a infância, sobre a vida em família. Perdi meus pais cedo e fui criada por outra família, então é sempre algo que me toca. Já na obra de Adélia, me identifico com a religiosidade, com o caráter mundano, o sentimento de que ela escreve o que todos sentem e gostariam de escrever", diz a atriz.
O cenário reproduz o intimismo que a poética das escritoras proporciona, trazendo uma cozinha - não raramente o ambiente mais aprazível de uma casa - e um cômodo com uma escrivaninha e livros, em referência à atividade literária das homenageadas. "É algo bem aconchegante, o espaço cênico é pequeno e circundado pelo público, que fica bem próximo e acompanha de perto o passeio pela vida destas grandes autoras", diz Nica Bonfim. Para criar esta imersão na poesia, as atrizes mergulharam no universo de Adélia e Cora, que transborda suavidade. "Nunca tinha me aprofundado tanto no trabalho das duas, e isso acabou se refletindo na interpretação, que é pausada, leve, tranquila, tem muita fluidez. Foi algo que também acabei incorporando para minha vida pessoal, porque sou muito agitada, e passei a ser mais observadora do mundo", comenta Sônia.
A direção do espetáculo é de Rafaela Amorim, que também assina a pesquisa e a seleção dos poemas trabalhados em cena. "Ela conseguiu mostrar, ao mesmo tempo, o lado delicado e corajoso destas mulheres que quebraram tantas barreiras e são até hoje tão atemporais em sua obra e em sua postura perante à vida", diz Sônia sobre a abordagem de Cora, doceira de profissão, tendo vivido longe dos grandes centros urbanos e alheia a modismos literários, e a mineira Adélia, que versa em prosa e poesia sobre a vida de província: a moça que arruma a cozinha, a missa, os vizinhos, gente simples.
A apresentação integra um projeto sociocultural de incentivo à leitura entre jovens e adultos com patrocínio dos Correios e do Ministério da Cultura. As sessões contarão com intérprete de libras e terão entrada franca, com distribuição de ingressos uma hora antes de cada uma delas. Para Nica Bonfim, além de estimular a leitura, a iniciativa é interessante porque demonstra o poder da poesia de sensibilizar as pessoas. "A peça desperta a vontade de conhecer mais sobre a vida e a obra delas e possivelmente o interesse pelo universo literário como um todo. Unir poesia e teatro foi uma experiência nova para mim, que possibilita presenciar, em tempo real, as pessoas rirem, se emocionarem, estarem em um contato mais real, mais orgânico com a literatura, algo lindo de se ver."
"CORA E ADÉLIA, RECEITA DE POESIA EM UM DEDO DE PROSA"
De 23 a 25 de maio, às 19h
Espaço Cultural dos Correios
(Rua Marechal Deodoro 470 - Centro)
Entrada franca, com distribuição de ingressos uma hora antes de cada sessão